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Glossário Técnico

27 de setembro de 2010

Conversas Plugadas - José Dias

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No dia 14 de maio, aproveitando a passagem do cenógrafo José Dias por Salvador, quando veio criar o cenário da peça O MELHOR DO HOMEM, o TCA o convidou para uma CONVESA bastante PLUGADA. Na oprtunidade, ele falou sobre a formação dos profissionais da área, trabalho em equipe, televisão, dentre outos assuntos.


APRESENTAÇÃO


Falar sobre cenografia é um prazer muito grande porque às vezes eu me pergunto se as pessoas entendem cenografia como arte, linguagem e técnica. Se elas sabem que cenografia de televisão, cinema e teatro são três linguagens completamente diferentes. As pessoas confundem cenografia com decoração. Não tem nada que ver. Cenografia é mais sentimento, é algo que leva tempo, não é uma coisa pré-estabelecida, que você pega o texto e faz de uma hora para a outra o desenho e entrega ao produtor e diretor. Isso não é cenografia. Cenografia não é o que vocês veem, hoje, em televisão. Ela não pode ser bela, não pode roubar a cena, tem que ser funcional e ter praticidade. Como é que ela nasce? Nasce desse sentimento. É um trabalho árduo e sofrido. Por quê? Porque quando pego o texto, faço a primeira leitura, a segunda, a terceira, e aí vou trabalhando esse texto, mergulhando e quase me torno um personagem dessa estória. Só que não posso preestabelecer nada. Não posso chegar para o ator, pois ele vai me perguntar qual é o seu espaço. Não posso dizer para ele, porque da mesma forma que ele está no processo de construção do seu personagem, eu estou no processo de construção do meu espaço cênico, que só vai se caracterizar a partir de uma ação dramática. Então, tudo tem um tempo. Já levei oito meses trabalhando um texto e cheguei a três elementos de cena --- um texto que tinha mais de dezessete cenografias. As pessoas acham que fazer cenografia é simples. Ela vai nascendo em função de um texto, de uma linguagem e de uma proposta cênica de direção. Então, tudo tem que ser em função de um texto com a dramaturgia e do que o diretor se propõe. Ele não vai determinar cor, textura, nada disso. Quem determina é o cenógrafo, e muitas vezes, a área útil de trabalho do ator e sua movimentação em cena. Isso eu provo a vocês, porque toda a geometria de palco e toda a estrutura e geometria da cenografia do espaço, quem determina, muitas vezes, é o cenógrafo. Então, tudo tem que ser em função de um texto com a dramaturgia e do que o diretor se propõe. Ele não vai determinar cor, textura, nada disso. Quem determina é o cenógrafo, e muitas vezes, a área útil de trabalho do ator e sua movimentação em cena. Isso eu provo a vocês, porque toda a geometria de palco e toda a estrutura e geometria da cenografia do espaço, quem determina, muitas vezes, é o cenógrafo.

1983 - Dueto Para Um Só

1999 - Bispo dos Rosários - A Via Sacra dos Contrários

Todos nós, em teatro, temos que trabalhar em equipe. Se não houver uma comunhão entre cenógrafo e diretor, não vai acontecer nada. Vai acontecer o seguinte: a direção vai para um lado, a cenografia para outro, e o iluminador e o figurinista para outro. Não houve uma comunhão. E para que isso aconteça, antes, é preciso haver uma proposta, e quem vai determinar é o diretor. Ele propõe a linguagem, a proposta cênica de direção, e vai caber ao cenógrafo responder graficamente a essa proposta e determinar a textura, a cor dessa forma que ele criou. Por isso que eu digo que é um
trabalho feito a seis, oito mãos. E aí entra o figurinista, que vai determinar a cor do figurino após conhecer a cor da cenografia, da mesma forma com o iluminador. Em teatro, isso é diferente do que a gente faz na televisão e no cinema. São três linguagens completamente diferentes. Uma trabalha a palavra, que é o teatro. O importante no teatro não é só a cenografia. Não é toda uma volumetria no palco que vai dizer se o espetáculo é bom ou ruim. Muitas vezes, o cenógrafo não tem nada no espaço. Pode ter marcado no chão alguma coisa, um elemento, uma banca, uma cadeira, um cubo, o que for. Para que o cenógrafo chegasse a esse elemento, à síntese, foram necessários alguns meses de trabalho. Teatro é síntese. Temos que chegar a um elemento que sirva ao ator como elemento de apoio, de força e de garra. Da mesma forma, vai servir para o diretor e o texto, porque esses elementos tem uma relação com a região, a pátria, a situação econômica, política e social do personagem onde se passa essa ação: se é um país que tem luminosidade, como no Brasil -- região Nordeste, ou se tem neblina, fogue, enfim, tudo tem que ser identificado no palco. No teatro, a gente tem que chegar à síntese da síntese. Temos que fazer com mais inteligência do que se faz em televisão, onde não existe isso, a não ser nos especiais, que são mais trabalhados. Eu sei por que trabalhei em televisão e fiz especiais e novelas. São completamente diferentes. Em cinema é outra coisa. Então, no teatro, a gente trabalha a palavra. O que eu tenho que oferecer para o diretor não é uma arquitetura nem fazer com que o ator represente diante de. Não é isso. Tenho que fazer com que ele represente dentro de. Então, para mim, o importante é que o ator utilize o elemento como elemento de força para ele, elemento de atuar. Tenho o hábito, por exemplo, de, quando estou no processo e tenho dúvidas, fornecer algumas coisas para os atores, a fim de que eles possam trabalhar. Às vezes deixo uma cadeira, um banco, um elemento para eles utilizarem sem saber. É assim que vou me inteirando do perfil de cada um desses personagens. O importante é saber quem é quem dentro dessa estória, e a partir deles, da ação dramática, é que vou construindo esse espaço. Tudo tem seu tempo. Nada pode ser pré-estabelecido em teatro.

1988 - O Preço

1999 - O Avarento

Em televisão, você faz uma cenografia que não considero mais como tal. Criam-se uns ambientes que não refletem a situação social e política dos personagens. São espaços criados, onde praticamente se apresentam o rico e o pobre. Dificilmente você pode ver uma cenografia de televisão, onde os personagens são identificados. Uma vez o Osmar Prado atuou numa novela. Era um motorista de taxi e morava num apartamento além do padrão para um taxista. Isso não existe. O que falta na televisão é a simplicidade. O que eles querem é vender o produto. Então, o profissional tem que atender a quem? Ao patrocinador e à emissora, e o trabalho dele, como artista, fica em terceiro plano. Muitas vezes, ele está vendendo um produto, com o qual não tem identificação, como nós temos no teatro, que fazemos em função de um texto, de uma dramaturgia, e não em função do patrocinador ou do governo. Enquanto no teatro a gente trabalha a palavra, na televisão trabalhamos a palavra e a imagem, e no cinema é outra coisa completamente diferente. O que fica, no cinema, é a imagem, e é isso o que mais importa.

1989 - Na Sauna

Atualmente existe um mercado muito grande para o cenógrafo. Ele pode trabalhar tanto em teatro, quanto em cinema, televisão, publicidade, comerciais institucionais e shows, que é uma linguagem bem diferente. É preciso pensar na pessoa que vai cantar, tem que ouvir as músicas.

1992 - O Retrato de Gertrude Stein

A gente não pode fazer algo onde uma pessoa fique só para representar alguma coisa. Você tem que integrar. Com a música é a mesma coisa. As pessoas tem o hábito de usar a tecnologia e colocar os cantores cantando diante de elementos eletrônicos. Quando tem, acho bonito. Mas o que acontece? Acaba com o artista e o destrói completamente. Então, primeiro tem que perceber a sua sensibilidade.

1993 - Epifanias

Não fazemos cenografia para simplesmente colocar alguma coisa no palco. Isso não faz sentido. Não estamos fazendo decoração. É uma profissão que já existe há mais de cinco mil anos. Tudo o que se coloca no palco, tem um sentido. O que tem que se fazer, primeiro, é ler o roteiro musical. O diretor vai preparar a seleção das músicas e dizer qual é a primeira, a segunda, o break, tudo. A partir dali, você começa, através da melodia, a elaborar os pontos. Tudo tem um sentido. Nada é gratuito. Se você tem possibilidades de trabalhar com recursos naturais, maravilha. Se isso tem relação com a música, com a letra, melhor ainda. Acho que não pode, de repente, um indivíduo do sertão, apresentar um som com uma viola, e ter uma parafernália eletrônica. Não tem nada que ver. É como a cenografia no palco. Muitas vezes não é o aparato todo que vai definir se o espetáculo é bom ou ruim. Não é isso. Não é por aí. Estou fazendo um musical em São Paulo, e me deram as produções de Buenos Aires e Nova York para eu ver. A montagem americana é uma parafernália tão grande, que fiquei pensando para que aquilo. Não tem sentido. Ela engorda e destrói o ator. Mesmo sendo um musical, o importante é a música e a letra, e não todo esse aparato.

1993 - O Livro de Jó

O grande problema, no Brasil, hoje, é a falta de formação. Eu fico assustado vendo que as pessoas estão se esquecendo da formação dos técnicos. Tenho muitas dificuldades, mesmo no Rio e em São Paulo, para encontrar profissionais que falem a mesma linguagem que eu falo ou que executem um trabalho. A gente faz um projeto, desenha e faz uma maquete. Ainda sou da época da maquete. Não da maquete virtual. Você entrega as plantas detalhadas. O desenho de cenografia é completamente diferente do de arquitetura, e muitas vezes tão tem quem execute. É outro problema sério no Brasil: a formação da mão-de-obra do cenotécnico. Encontramos em alguns lugares uns indivíduos que se intitulam cenotécnicos, mas não são porque não entendem de cenotecnia, de uma caixa cênica, não sabem construir nem montar uma cenografia, mas não tem humildade de dizer que quer aprender, ou o indivíduo que quer ser maquinista ou carpinteiro teatral. Qual é o problema? É um artesão, não é um indivíduo de construção civil nem é operário. É a mesma coisa com quem trabalha nas coxias, o diretor de cena e o contra-regra. Onde estão esses profissionais? Todo mundo quer fazer teatro, ser ator. O que existe de escola de formação de atores neste país, é uma coisa inacreditável. Em São Paulo, em cada esquina tem uma. No Rio de Janeiro também. Aí, de repente, alguém faz a cenografia e você diz: “Meu Deus! Que loucura! Olha só essa estrutura!” Não tem noção alguma da técnica. Cenografia tem que ser entendida como arte, técnica e linguagem, que precisa do cenotécnico. Sem ele, não existimos. É uma profissão que está desaparecendo.

1995 - Lima Barreto ao Terceiro Dia


PERGUNTAS


DJALMA TULER (Diretor teatral) - Sabemos que a formação não se dá apenas dentro da universidade. Como é hoje, neste tempo da sociedade do espetáculo, onde as pessoas se dizem cenógrafos, atores e diretores? Como é neste mundo contemporâneo de estrelas fáceis, lidar com esta questão da arte, do artesanato, da devoção e do cuidado da criação de um espetáculo?

JOSÉ DIAS - Antes de mais nada, tem que ter humildade. Eu lembro quando estudava arquitetura, larguei para estudar cenografia e fui assistente de Pernambuco de Oliveira, só para mostrar o que é a humildade. Ele foi meu professor. Fui seu assistente da seguinte forma: ele, durante uma aula, disse: “Estou fazendo um trabalho no teatro João Caetano e gostaria de saber quem...”, eu o interrompi falando: “Eu.” Ele disse: “Como? Não falei o que é.” Eu disse: “Eu quero. Seja o que for.” Ele falou: “Então esteja amanhã, às 7:00 hs no teatro João Caetano e procure o Sr. Onacir Flores.” Faltando quinze minutos para as 7:00 já estava lá procurando o Sr. Onacir Flores. Ele me mandou entrar e me deu uma vassoura. Eu ainda era estudante de arquitetura, além de programador formado pela IBM. Fiz cobol, fortran, fui até a última geração de computadores. Naquela época só existia a IBM e a Borges no Brasil. Então ele disse para eu varrer o palco, catar os pregos amassados, os sarrafos amassados com menos de trinta centímetros e jogar no latão. Eu fiz. Quando faltavam quinze minutos para meio dia, Pernambuco chegou e perguntou ao Flores como estava o menino, e o Flores disse que estava tudo bem. Ele me chamou para almoçar. Estava com muita fome. Saímos, paramos na Avenida Passos, lá no Rio, onde tem um botequim. Ele puxou, no balcão do café, um bolinho que tinha dentro de um plástico, me entregou, olhou para mim e perguntou se eu queria o meu café pingado. Disse que não. Terminei o café, comi o bolinho como se estivesse numa mesa farta. Fomos para o teatro, seu Flores me entregou a vassoura e continuei varrendo o palco. Não perguntei nada, mas estava louco para ver maquete e as plantas. Deu cinco horas da tarde. Naquela época se construía e montava o cenário no palco. Os atores começaram a chegar às cinco horas para ensaiar. Quando terminou o ensaio, o pessoal começou a recolher tudo, e eu já tinha feito o meu trabalho. Entreguei a vassoura a seu Flores, e Pernambuco chegou e quis saber como eu me comportei. Seu Flores disse que eu tinha ido bem e feito tudo o que ele mandou. Aí ele reuniu todo mundo na beira do palco e disse que a partir daquele dia, eu era o seu assistente. Ele me perguntou se eu queria saber por que e me deu três motivos, dizendo: “Em teatro a pessoa tem que ter pontualidade, humildade e disciplina. E você teve. Você chegou faltando quinze minutos para as sete, e eu mandei que você chegasse às sete; você comeu bolinho como se estivesse num banquete e não perguntou pelo almoço, e o Flores lhe deu uma vassoura, e você varreu o palco humildemente. Não disse em momento algum que era estudante universitário, que estudava cenografia e estava ali como assistente ou tentando ser um.”

1995 - Te Buscando pelo Avesso

Então, o que a gente encontra pelo país? Pessoas que não tem humildade nenhuma e se arvoram em fazer cenografia e construir coisas desproporcionais. Eu estava entregando um teatro no Rio de Janeiro, o OI Futuro, uma casa com um só pleblom. Fiz toda a consultoria da caixa cênica, e chegou uma cenografia do musical. Quando vi a cenografia, disse: “Gente, pelo amor de Deus, as varas não vão suportar isso. E outra coisa: não cabe dentro do palco.” Então tem pessoas que fazem cenografia e não tem a humildade de chamar um estudante de cenografia para consultar. Até hoje, meus ex-alunos e colegas profissionais me ligam para tirar dúvida. A maioria não tem essa humildade. É tão simples. Eu não sou o dono da verdade. Ninguém é Leonardo da Vinci. Só existiu um Leonardo da Vinci. Não tem outro. É simples. Se estiver com dificuldade e me pedir para ajudar, vou lá e ajudo. Quando tenho dificuldade, recorro a um colega. Por que as pessoas não tem essa humildade? Acho que faz parte do processo de formação de qualquer um. É tão simples. Se a pessoa estiver disposta a aprender, é só pedir, que eu ensino. Tenho o hábito de ajudar. Acho que nasci para ajudar as pessoas. Quando fui ao Mato Grosso, lá em Alto Floresta, e me mostraram um teatro que tinha sido construído, vi uma arquitetura linda e maravilhosa. Entrei e tomei um susto, porque não era um teatro. Perguntei ao arquiteto por que ele tinha feito aquilo e por que não tinha chamado um profissional, um ator ou diretor para ouvi-lo. Ele disse que não quis ouvir ninguém, que pegou um livro. Aí propus ir para lá, ficar uma semana e trabalhar em cima do projeto dele. Ele era funcionário da prefeitura. Fiquei uma semana, pela manhã, à tarde e à noite, e modifiquei o projeto dele, completamente. Fiz uma adaptação e intervenção, evidentemente. Ele teve a humildade de aceitar isso. Muitas vezes, você chega, e o arquiteto te convida dizendo que está com problema, como agora no Rio de Janeiro, onde Glauco Campelo fez um projeto de teatro para a Biblioteca, na Presidente Vargas, e me chamou. Eu lhe disse que aquilo não era teatro. Ele me deu total liberdade para eu fazer o que quisesse. Rabisquei tudo e fiz o teatro, e ele ficou grato. Até o Niemeyer, um homem com cento e dois anos, teve humildade de louvar o trabalho, porque foram convidados profissionais que vão fazer os projetos executivos complementares da empresa, que são pessoas da área. Nem sempre encontramos isso. As pessoas penduram umas coisinhas no palco e se dizem cenógrafos. O outro diz que é ator. Você põe no palco, mas ele fez televisão. Nunca pisou no palco, é um desastre e não tem a humildade de querer fazer curso com um diretor para ser ele orientado, porque só sabe trabalhar diante de três câmeras. Na nossa área, o que a gente encontra, pelo país afora, são pessoas que não tem formação. Mas a culpa não é delas, e sim das cidades que não criam cursos. É preciso fazermos um seminário sobre a situação desses profissionais no Brasil. O que está acontecendo com os cenotécnicos, maquinistas, os homens que trabalham na carpintaria teatral e na caixa? Estão desaparecendo e ninguém está tomando conhecimento. As pessoas só estão construindo. Eu quero saber quem são os profissionais que vão trabalhar. No Rio de Janeiro, que tinha uma formação, não tem mais. Era o Centro Técnico Berlamino de Oliveira. Trabalhamos lá formando pessoas.

1997 - Divinas Palavras

A cenografia não é para ser bela. Ela tem uma função e um sentido no espetáculo. Quando você faz a cenografia, e alguém diz que não tinha nada, acho ótimo, porque cenografia não tem que aparecer, não é um show pirotécnico, tem como função servir de elemento de apoio para o ator. É uma ferramenta para ele.

1996 - Artimanhas de Scapino


CÍNTIA (Arquiteta) - Você começou a falar da maquete no seu processo. Tem primeiro o desenho, a conversa com o diretor ou depois a maquete?

JOSÉ DIAS - Cada cenógrafo tem seu traço, sua sensibilidade, processo e seu método de trabalho. Quando o diretor ou produtor me convida, o que faço? Pego o texto e faço uma primeira leitura, que chamo de leitura branca, sem compromisso algum. Depois pego novamente o texto e faço a segunda leitura. Vou sabendo quem é quem, ou seja, os personagens dentro da estória. Aí vou fazendo o que chamo de análise técnica, como é feita em cinema, onde se vê sequências, cenas, set, personagens, objetos de cena, figurino e todos os elementos necessários. No teatro, faço a mesma coisa, sintetizando. Pego atos e cenas e vou colocando os elementos de cada cena, identificando a região, pátria, perfil do personagem, procurando saber quem é ele. Quando faço a terceira leitura, mergulho dentro desse texto como se fosse outro personagem. Pode explodir uma bomba do meu lado, que vou estar a 500 Km de distância. Virei outro personagem. Vou transitar e começar a trabalhar. Aí começo a fazer os primeiros rabiscos, mas nada definitivo. São apenas visões que tenho. É como se eu tivesse o expressionismo. Só imagens, nada realista. Vou me situando dentro dessa estória. Em algumas das cenas, faço até um traço mais realista. Vou identificando cena por cena. A partir daí, vou assistir aos ensaios. Para mim, o importante é ouvir o diretor e saber a que ele se propõe. Vou vendo os ensaios e a movimentação dos atores. A leitura de mesa é importantíssima. Ali você começa a entender quem é quem dentro da estória e a dialogar. Vou trabalhando durante uma, duas, três, quatro semanas, e não mostro nada a ninguém. É um trabalho lento, sofrido e solitário. Faço de madrugada, virando noites. Já virei quatro noites seguidas. Depois de ter mais ou menos a coisa esboçada, uma idéia, o que é que eu faço? Começo a dialogar com o diretor e mostrar algumas coisas. Quando olho para ele e vejo que seus olhos crescem, tudo bem. Do contrário, percebo que estou no caminho errado. Aí penso até que às vezes estou pegando atalho. Na arte não existe atalho. É como a natureza. O rio não pega atalho. Ele segue para o oceano. Se pegar atalho, na arte, vai se dar mal. Um exemplo é aquele ator que sai, faz novela, se acha o máximo e depois cai. Tudo tem um sentido, seu momento e sua hora. Vou trabalhando, trabalhando. Aí começo a colocar alguns elementos para os atores trabalharem. Vou ouvindo o ator. Posso sair para jantar com ele, conversar. Suas informações são importantes para mim. Procuro saber como ele se sente dentro do personagem. Até que começo a conversar com o diretor, e a primeira coisa que faço é o estudo de volume, ou seja, a volumetria do espaço. A partir daí, quando sinto que já estou no caminho certo, converso com o diretor mais uma vez, e ele manda seguir em frente. Faço a maquete com os mínimos detalhes, mas não mostro para ninguém. Ela é a prova dos nove. Duvido de cenógrafo que não faz maquete. Ele pode ser maravilhoso e ter ganho todos os prêmios, mas teatro não é televisão nem cinema. Teatro é outra coisa. E tem que fazer com amor. Eu faço com amor. Quando faço a maquete, coloco tudo nela. Fiz uma exposição recente em São Paulo com algumas maquetes. Então, a partir daí, me reúno com o diretor e mostro para ele, cena por cena. Acompanho os ensaios sem faltar.

1997 - Coração na Boca

Fiz a maquete, mostrei ao diretor. Fiz cena por cena, e ele gostou. Aí entro e começo a mostrar tudo, mas depois de meses de trabalho. Nada pode ser como se faz em televisão, que a gente recebe o roteiro hoje, vai lá, monta com os elementos estruturais no estúdio e faz uma ambientação. Televisão e teatro tem que ser feitos com sentimento, com amor, senão dificilmente acontece. É como o ator. Se ele está mal e não se sente bem, substitua. É a melhor coisa que se faz.

1996 - O Doente Imaginário


MOACYR GRAMACHO (Cenógrafo/Figurinista) - Ultimamente, algumas montagens de espetáculos teatrais no país recebem as assinaturas do diretor de arte e do cenógrafo. Como você vê esse profissional - o diretor de arte - em teatro?

JOSÉ DIAS - Na verdade, o diretor de arte, no Brasil, surgiu na década de oitenta. Começou no cinema, no início do século XX. Quem era o cenógrafo? Era o indivíduo responsável pela composição visual de um espetáculo. E o diretor de arte? Quem é? É aquele que trabalha a cenografia e o figurino. Mas o diretor de arte de Publicidade é completamente diferente. O indivíduo que faz storyboard não tem nada que ver com diretor de teatro, cinema ou televisão. Na verdade, diretor de arte no teatro é pouco usado no Brasil. De modo geral, o cenógrafo, o figurinista e o diretor são os que formam a equipe que vai trabalhar. Quando há uma complexidade maior, necessita-se de um diretor de arte na composição da equipe. Ele é responsável por toda a plasticidade. É quem determina a palheta do filme, da novela e de uma composição teatral. O problema é que estão distorcendo o que é diretor de arte no Brasil. Eu fui aluno de Anísio Medeiros e Alexandre Holf. Eles faziam cenografia. Na época não existia o diretor de arte. O Alexandre Holf fez a cenografia do filme O assalto ao trem pagador. Era um austríaco que veio fugido da guerra. Eu conversava muito com ele e era tratado como se fosse seu filho. O Anísio também fazia cenografia e figurino para os filmes. Mas o que ele fazia era quase direção de arte. Só que nessa época, no Brasil, ainda não havia o diretor de arte, enquanto nos Estados Unidos já existia direção de arte desde o início do século passado. Um dos primeiros filmes que começaram a ter esse profissional foi O assalto ao trem pagador, em que aparece uma carruagem. Depois corta para o interior. Por quê? Porque naquela época, no início do cinema, na década de 20, toda a parte de montagem de cenografia era feita por carpinteiros teatrais. Thomas Edson contratou um cenógrafo para construir no galpão uma estrutura para ele fazer suas experiências, e no cinema, ainda não tinha acontecido. Só depois de 1916 que surgiu a complexidade da volumetria arquitetônica, sendo necessário chamar o cenógrafo. Aí como ele começou a trabalhar? Convidando outro cenógrafo, figurinista, caracterizador, maquiador, enfim, formou uma equipe. Só que ele é um cenógrafo de formação e domina a cenografia e a indumentária, podendo conduzir essa equipe, tanto em cinema, quanto em televisão. O que foi acontecendo? Esses profissionais começaram a trabalhar com a equipe. Quando, por exemplo, a televisão surgiu na década de 50, muitos saíram do cinema e foram fazer seriados de televisão. A estátua do Oscar foi desenhada pelo cenógrafo e diretor de arte, Sedrink. Nesse período, os profissionais da carpintaria teatral foram para os grandes musicais da Broadway. No Brasil, o diretor de arte surgiu no final da década de 80, sendo que antes em televisão e teatro nunca se deu este nome. É raro ver diretor de arte em teatro. Existe em televisão, mas ele não faz a direção de arte das novelas. Faz os primeiros capítulos e sai. Isso não é direção de arte. Direção de arte é quando ele pega a equipe, domina, tem conhecimento e know how como cenógrafo e figurinista. Assim ele pode se intitular e dizer que é diretor de arte. Aí chama o cenógrafo, figurinista, maquiador, caracterizador, técnico de efeitos especiais e vai junto com o diretor do filme e o diretor de fotografia.

1996 - O Olho Azul da Falecida


MÁRCIA (Estudante de comunicação) - Você falou de cenografia para TV, cinema e teatro. Gostaria de saber como é para o cenógrafo trabalhar em teatro, com uma peça que já é consagrada e com uma inédita. Qual a diferença?

JOSÉ DIAS Encaro com maior naturalidade. Pode ser uma peça consagrada ou um grupo de jovens. Para mim, vou trabalhar com o mesmo sentimento, amor e com o coração. Pode ser uma produção que tenha grandes recursos ou não. O meu trabalho é sempre feito com carinho e amor. O que acontece é que são projetos que muitas vezes temos que trabalhar em função do texto. Sendo uma dramaturgia conceituada ou não, a responsabilidade é a mesma, tanto um texto novo, de um dramaturgo jovem ou uma obra consagrada. A liberdade é a mesma. Só que a nossa liberdade tem limite. Eu não tenho total liberdade para fazer tudo o que quero no palco. Respondo graficamente à proposta cênica da direção. Quando desenho e percebo que não é como o diretor quer, é sinal de que estou caminhando por outro rumo, e ele tomando outra direção. Meu trabalho não é esse. No filme, vou determinar a palheta, mas antes vou conversar com o diretor. Vou trabalhar com o diretor de fotografia. É um trabalho a seis mãos. É por isso que eu digo que no teatro há mais solidariedade, é mais família, porque a gente se encontra todos os dias. Depois é uma tristeza, porque, com a estréia, cada um vai para seu lado. Só ficam o elenco e a produção. No cinema e na televisão, você faz a vai embora. Não tem essa relação como no teatro. No teatro tem mais participação, onde todos formam uma família, incluindo também o pessoal da maquinaria, contra-regra, enfim, todos envolvidos no processo. Com relação à formação do indivíduo, quando ele chega e diz que é cenógrafo e tem humildade, forneço livros, mostro tudo. Mas quando é arrogante, não o ajudo, deixo se virar sozinho. Um dia ele vai cair, e o tombo será feio. Quando faço ópera ou qualquer musical, e o indivíduo diz que é músico, ele tem que tocar. Mas no teatro quer ser cenógrafo só porque colocou alguma coisinha no palco. Eu não toco porque não sou músico, meu trabalho é aqui. Eu trabalho em qualquer concepção plástica de qualquer musical. Não entendo de música. Faço musicais. O músico dificilmente engana. Tem gente que diz que é ator e diretor. Quero ver é dirigir. A arte tem isso: essa liberdade em que as pessoas se intitulam dizendo que é isso e aquilo. Então faça, tente.

1997 - Cartas Portuguesas

É importante que haja cursos que formem profissionais que dominem a técnica. Para isso, temos que ter espaço equipado, como aqui no Teatro Castro Alves. Podemos ter o teatro com o urdimento, porão, enfim, com todas as condições técnicas para formar profissionais.

1997 - O Carteiro e o Poeta


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