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Glossário Técnico

17 de janeiro de 2011

Conversas Plugadas - Jum Nakao

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Convidado para ministrar a oficina “Modelar –Inovações: Geometria x Corpo x Espaço” no Centro Técnico do Teatro Castro Alves, nos dias 6 e 7 de dezembro de 2010, Jum Nakao, estilista, professor e artista plástico, participou do projeto Conversas Plugadas falando sobre o seu trabalho e o que o fez parar com os desfiles.





APRESENTAÇÃO


Estou muito contente de estar aqui em Salvador. Quero agradecer ao Teatro Castro Alves e a todas as pessoas que se empenharam para que fosse possível, tanto a oficina quanto essa conversa plugada. Agradecer também às pessoas que se inscreveram, porque o espetáculo, sem público, não acontece. É fundamental que vocês estejam aqui hoje nesta conversa para que possa fluir.

Algo que se tornou muito recorrente e meio que “interconectável” --- não sei se esta palavra existe ---é eu ter que mostrar isso que vocês vão ver agora. Em qualquer lugar aonde eu vou, virou uma situação engraçada, pelos menos para mim, porque antigamente as pessoas me apresentavam pelo meu nome. Elas diziam: “Este é o Jum Nakao. Ele é estilista e artista.” Hoje em dia, principalmente quando estou no exterior, as pessoas não me apresentam mais assim. Eu fiquei em segundo plano. As pessoas me apresentam da seguinte maneira: “Ah! Sabe aquele desfile de papel? Foi ele quem fez.” É a mesma coisa quando se tem um filho famoso. Você deixa de ser você e passa a ser o pai ou a mãe de fulano. Não é mais a pessoa. Passa a ser o pai ou mãe de alguém, que é mais importante do que você. Eu vou mostrar isso aqui, e, para quem não conhece, é um desfile de papel. Esse desfile aconteceu em julho de 2004, no São Paulo Fashion Week. Para fazer esse desfile, trabalhamos mais de setecentas horas, consumimos um pouquinho mais de meia tonelada de papel, mais de cento e cinqüenta profissionais de diversas áreas se integraram para que esse sonho fosse possível. Esse projeto aconteceu depois de vinte anos dedicados à indústria da moda. Durante vinte anos, batalhei para um dia estar nesse lugar – o maior evento de moda da América Latina. Mas chegou um momento em que percebi que faltava algo que me fizesse sentir a necessidade e desse sentido para eu continuar a minha carreira como estilista. Depois de trabalhar vinte anos, eu vi que não havia conseguido transformar a sociedade. Muito pelo contrário. Percebi o quanto eu estava embrutecendo junto com ela. Manter uma empresa nos patamares em que eu tinha, com um mundo de funcionários e obrigações para sobreviver, era uma coisa louca. Aí resolvi renunciar. As pessoas me perguntam, muitas vezes, por que fiz isso. A única resposta que tenho para dar é que tinha que ser feito. Tenho certeza de que, de uma forma que talvez vocês entendam, é como estar casado ou namorando e um dia você chega para a pessoa e fala que não quer mais ficar com ela. Não é porque tenha encontrado outra. É simplesmente porque acabou. Chega um momento que não dá mais para continuar. Ou vocês vão chegar do trabalho e falar: “Olha estou indo embora. Fui.” É que chegou num ponto que não dava mais. E para mim, chegou esse momento. Eu queria transformar de outra forma, e se eu quisesse realmente transformar a sociedade, eu percebia que precisava formar o indivíduo. O engraçado é que a minha assistente, que era recém contratada, me disse: “Poxa, você vai parar! Eu acabei de entrar aqui. Você tem tanto para me ensinar. Vinte anos, não é? O que você vai fazer com tudo isso que você sabe?” Eu disse que não tinha idéia, mas que era preciso parar. Chegou a um ponto que quero fazer um trabalho que mostre o quanto as pessoas estão cegas, o quanto elas não estão mais enxergando, o quanto existem valores, o invisível ainda possível no real que as pessoas não enxergam. Elas estão olhando muitas vezes do que é feito e qual a marca. Não estão olhando como é feito, por quem é feito e do que é feito. Foi engraçado porque, no dia seguinte, as pessoas iam ao show room e não havia roupa para ser vendida. Para mim, foi muito tocante porque, seis meses antes, a equipe inteira sabia que aquele desfile seria o último e tinha a opção de me abandonar e procurar outro emprego. Mas todas as pessoas ficaram comigo até o último momento, porque todas compartilhavam desses questionamentos.









Fui convidado para fazer uma palestra na Faculdade onde estudei – na Fundação Armando Álvares Penteado. O diretor da Faculdade de Artes Plásticas pediu que eu fizesse uma palestra sobre a minha carreira e ficou sentado. Fez a apresentação, e no final me confessou que, normalmente, fazia a
apresentação e ia embora, mas daquela vez ficou ali sentado vendo minha palestra e percebendo o interesse das pessoas. Me disse que o tinha cativado e que eu tinha jeito para dar aula. Aí veio a idéia. Pensei: “Vou juntar o que o professor havia pensado com o que a minha assistente havia me dito. Vou dar aula.” E tenho feito isso há seis anos. E paralelo a isso, comecei a trabalhar com arte. Acredito que essas duas ferramentas de educação são capazes de transformar o indivíduo. É uma ferramenta extremamente libertadora e, juntamente com a arte, é capaz de estabelecer uma nova relação das pessoas com o entorno. São fundamentais e são grandes ferramentas para eu fazer aquilo que planejava, inicialmente, que era transformar a sociedade, começando e semeando o que sinto pelo outro. Esse é um breve resumo de como vim parar aqui hoje.

Logo após o desfile, eu fui convidado para fazer uma instalação numa das principais galerias de arte de São Paulo, que se chamou “A fonte dos desejos”. Ficava na parte central da galeria, e do lado da fonte, colocamos uma urna com o regulamento: SEU DESEJO POR UMA MOEDA. Era o seguinte: “Coloque seu desejo na urna, jogue uma moeda na fonte, que em cento e vinte dois dias materializaremos o seu desejo” Cento e vinte dois dias depois, recolhemos todos os desejos que foram colocados na urna e os materializamos. Transformamos esses desejos na capa e contracapa do nosso livro. Não sei se as pessoas queriam realizar do jeito que nós podíamos materializar aqueles desejos, transformar alguma coisa material. E no dia seguinte, naquela imagem que vocês viram, cheia de gente festejando em volta da fonte, a dona da galeria me ligou dizendo que o gato subiu no telhado, e a fonte caiu, na madrugada do primeiro dia. E tinha que durar três meses. Então nós chamamos um vídeo--artista que tinha feito aquelas imagens no dia anterior para fazer um vídeo instalação na parte de serviço. E dentro da galeria tínhamos uma janela que depois seria a fonte. E ao lado dessa janela, nós colocamos outra janela, que era virtual. Pegamos uma TV de plasma, colocamos uma moldura imitando a janela. Então a pessoa olhava e via a fonte inteira na janela virtual, e da janela, via a fonte que tinha se transformado em ruína. E essa instalação acabou ficando durante os três meses da exposição. Foi importante porque nós percebemos a importância de incorporar, muitas vezes, o acaso, o desastre, essas coisas imprevisíveis. Mesmo a fonte não tendo mais a forma de uma fonte dos desejos, as pessoas continuavam lá interagindo com a obra, colocando seus desejos na urna e jogando moedas no que restou da fonte.


PERGUNTAS


PARTICIPANTE – Como foi fazer esse trabalho? (Sobre a direção de arte e figurino para o comercial do novo omega - setembro – 2007)

JUM NAKAO – Nós trabalhamos com um escritório de 3D, que se chamava O Lobo, que é o mais importante do Brasil. Criamos o carro, o transformamos em pixels, criamos a visão de uma pessoa de cima porque sabíamos o que era visível do alto. Então podíamos definir que cada pessoa que estivesse em cada lugar, deveria estar pronta para definir a pintura do carro, fazer a roda com a roupa branca, e a roupa vermelha para fazer o farol. Depois doutrinamos novecentas para estarem no lugar certo, no momento adequado. Foi uma coisa meio épica. Só que não tínhamos dinheiro para contratar novecentas pessoas. Contratamos trezentas. Então filmamos primeiro a frente, o meio e o final. Depois juntamos tudo na edição. São os truques de cinema. A grande questão é como nós íamos passar três filmes sobrepostos. Só que uma pessoa não podia ocupar o espaço da outra. Tivemos que traçar caminhos. Essas pessoas teriam que entrar aqui para fazer a frente. Não podiam cruzar, senão teríamos pessoas ocupando o corpo de outras. E a idéia não era essa. É um truque, sim. Queríamos tanto fazer de uma vez só, que seria mais rápido. Filmaríamos tudo de uma vez e acabaríamos. Mas tivemos que filmar em três dias, com a mesma luz e o mesmo sol. Contratamos o serviço de meteorologia para garantir que durante três dias teria tempo nublado, porque não podia ter sombra. Vocês viram que não tinha sombra, porque filmar com sombra e depois somar as imagens, teríamos uma cena engraçada, pois ficaria gente com sombra, de um lado, e gente com sombra, do outro.









OLGA GOMES (Artista plástica) – Foi muito trabalhoso?

JUM NAKAO – Não. Só para fazer. Tem um projeto que se chama Vestígios Vestíveis. Também tem o site que dá para ver fácil. É www.jumnakao.com.br. É um projeto que fizemos também a convite do Centro Cultural do Banco do Brasil. Foi um convite para voltar ao São Paulo Fashion Week, vindo através de uma instituição cultural responsável por democratizar e levar a cultura para todos os grandes centros, e quando recebi o convite, fiquei muito contente porque um centro ligado à cultura me convidou para voltar ao São Paulo Fashion Week. Me pedem para voltar, mais ainda não chegou a hora.
















PARTICIPANTE – Você falou do São Paulo Fashion Week. Você não tem saudade de fazer roupa de moda?

JUM NAKAO – Um amigo meu, o Paulo Beto, músico, me perguntou a mesma coisa. Ele fazia as trilhas para mim. Minha equipe inteira sempre ficou na maior fissura de eu voltar a fazer. Eu contei para ele uma história que ilustra bem a diferença do que eu estou fazendo agora e do que eu fazia. Falei: “Você se lembra de quando você fazia CD?” Ele disse que sim. Aí falei: “Então você fazia um CD e ele ia parar na prateleira de um supermercado e de uma loja de disco. As pessoas compravam, e você não ficava sabendo quem comprou, se a pessoa tinha gostado, se dançava com a sua música. Enfim, você não sabia o que acontecia”

Hoje eu faço show ao vivo. Dou aula, estou aqui fazendo palestra, faço uma instalação e vejo o brilho no olhar das pessoas. Eu vejo as pessoas dançando a minha música. Não preciso de algo me intermediando. Claro que estou usando aqui algo que faça com que vocês me vejam e me ouçam. Meus meios são esses. Mas são meios que me aproximam de vocês. Eu consigo ver essa transformação. O que é mais importante, num projeto, é esse retorno. É você perceber que a sua existência e os seus pensamentos tem uma continuidade do pensamento do outro. Quando fiz o desfile de papel, há seis anos, gostei. As pessoas não esquecem esse desfile. Depois de seis anos, eu vejo quantas pessoas eu consegui vestir com esse desfile. E nunca vesti tantas pessoas com um desfile que sequer produziu uma roupa. O grande “barato” foi conseguir vestir essas pessoas onde eu mais gostava, onde elas fossem vestidas, que era no pensamento e na dignidade.

Assim que acabou o desfile, invadiram os camarins. Havia microfones, câmeras e fotógrafos. Parecia que eu era o maníaco do parque. Tem uma foto em que só aparece a minha cabeça e várias pessoas em volta. E eu lá, respondendo as perguntas. Finalmente, quando me liberaram, fui lá, arrumei minhas coisas. Ainda bem que não tive que chamar o caminhão baú, porque para levar tudo para o desfile, tive que alugar um. Enquanto eu estava dando as entrevistas, vi que todo mundo que estava ali, desabou. Todos correram para a passarela, a fim de pegar um pedacinho do que tinha sido rasgado. Naquele momento, tive a certeza de que o desfile tinha funcionado. Teve uma cena em que uma menininha pegou um pedaço grande e, diante do olhar atônito de outras pessoas que não conseguiram pegar nada, ela, com uma singeleza, pegou aquele pedaço de papel, rasgou em pedacinhos e deu para todos, quase como uma hóstia. Aí pensei: “O desfile funcionou” Acabou. É óbvio que tive que pegar o caminhão para levar tudo embora, mas não sobrou nada, as pessoas levaram tudo embora. E enquanto eu estava ali sem ninguém, comecei a subir uma rampa dentro do prédio da bienal, vi uma senhora que estava me chamando. Olhei para trás e era a faxineira. Quando me viu, jogou a vassoura e a pá na minha direção. Fiquei pensando se eu ia ou ficava, mas era só uma senhora e resolvi ficar. Ela chegou perto, e estendi a mão para cumprimentá-la. Ela me deu um abraço forte, carinhoso e falou: “Adorei o seu desfile. Foi fantástico.” Aí perguntei como ela tinha conseguido ver o desfile, já que é para os vips e as celebridades. Ela disse que na hora em que estava acontecendo, simultaneamente, foi transmitido por todos os telões do prédio, e ela estava diante de um deles e tinha parado de trabalhar para assistir. Perguntei por que tinha gostado tanto. Ela disse algo que me serviu posteriormente para conceber o título desse trabalho, que foi o seguinte: “Acho que sei o que você quis dizer. Acho que você quis dizer é que o mais importante não é o que as pessoas mostram por fora, é o que elas tem por dentro. É o indizível.” Isso veio de uma senhora muito simples, iletrada, que não teve oportunidades. É uma senhora que provavelmente jamais teria condições de se vestir com uma roupa minha. Sinto saudade, sim, de voltar um dia a fazer desfile. Mas tenho muito que fazer por este Brasil. Tenho semeado o que posso para ver se as coisas mudam, e obviamente ainda não mudaram o suficiente. Acho que tem muito ainda o que batalhar para que haja um lugar no campo onde as coisas realmente possam nascer. Eu vejo quantos alunos formei, mas eles ainda não tem uma resposta nem essa troca, porque falta educar, e muito. Quando posso fazer um projeto como o de hoje, de estar aqui falando com várias pessoas, como o convite para fazer uma instalação que ficou sete dias no Aterro do Flamengo, onde milhares de pessoas puderam passar e ver, fico contente. De certa forma, eu consigo apaziguar um pouco a minha saudade de fazer desfile, de fazer um projeto meu, porque um dia decidi trabalhar com moda e desde então, continuo trabalhando com moda, criando, investindo em cabeças e formando pessoas que vão, com certeza, mudar este pais. Um dia voltarei.









PARTICIPANTE – Quem conhece o seu trabalho – e eu sou apaixonada por ele – e acompanha moda, sabe que são trabalhos muito diferentes do que estamos acostumados a ver em cada coleção que entra e sai em cada estação. Eu queria que você falasse um pouco da sua visão, do que você acha sobre essa moda que sabemos que ficou tão diferente. Não sei se ditadora seria a palavra, mas ela comanda algumas coisas, diz a cor que tem que ser usada, enfim, ficou um pouco diferente.

JUM NAKAO – Eu acho que quem diz não é a moda. Cada um faz as suas escolhas. Eu já vivi um dilema enquanto artista e professor, com relação ao mercado. Mas hoje penso diferente. Acho que consumir é uma atitude política. Estou dando meu voto. Um voto que é mais caro do que um voto para um político. Um voto que me custa aquilo que é o meu suor, meu honorário e que eu faço com honra. Eu vou decidir quem vou premiar, a quem vou dar oxigênio financeiro. E obviamente vou escolher as pessoas a quem vou prestigiar. Vou comprar peças de pessoas que tem princípios. Acredito muito que, dessa forma, podemos construir valores diferentes e mais consistentes. Eu poderia citar vários filósofos, mas vou citar um bêbado que encontrei outro dia. De repente, ele olha para mim e fala: “Pobre é pobre porque compra a mesma porcaria um monte de vezes.” Então vai continuar pobre porque compra errado, quer levar vantagem e compra mais barato, compra um produto que é feito com mão-de-obra escrava. E quem compra assim, está contribuindo para a criação de um país de escravos. Está querendo comer comida que é servida em cocho como se vocês fossem animais. Se vocês não querem comer comida que é feita com carinho, vão continuar em cocho, sim. Quando o indivíduo consome com consciência, está transformando e criando novos valores. Os valores precisam ir além daquilo que aparentemente é uma vantagem. Se cada um, individualmente, quiser levar vantagem, jamais vamos construir uma nação. Eu acho que a gente tem que pensar de forma coletiva e começar a decidir. Eu quero prestigiar onde eu moro, quem eu sei que tem valores e não quer levar vantagem. Não quero comprar o mais barato, porque acho que nós merecemos um país melhor. Merecemos ser bem tratados e ter dignidade. Não vou comer em um lugar onde uma pessoa me serve mal. Não sou mulher de malandro para ser mal tratado. Quero ser bem tratado. Quero gentileza. Gentileza gera gentileza. Generosidade gera generosidade. E vou pagar mais caro, sim. Por quê? Porque essa pessoa é que quero que seja exemplo. E não aquele malandro que leva vantagem e faz tudo de qualquer jeito e que se deu bem. Este país tem que deixar de ser o país do indivíduo que se deu bem, mas do indivíduo que faz bem. Quando o ser humano se considerar merecedor, quando as pessoas se considerarem dignas, vai acontecer uma grande revolução. Uma revolução de mais do que o material se torne importante. O imaterial passa a ser fundamental. Como foi feito? Eu quero aquilo que foi feito na madrugada mais linda, com toda a doação possível. Eu quero que isso, que é invisível, seja valorizado, senão fica aquela velha história: tem lugares que, como você encontra mais barato, então vai fazer lá, como, por exemplo, em Cingapura. Eu não quero. Quero saber onde é melhor, e vou fazer nesse lugar. O que é caro é o que o bêbado diz. O barato sai caro para um país, para todo mundo, e os valores vão piorando cada vez mais. Cada vez mais vamos tendo um nivelamento por baixo. Cada vez mais um fast food, fast fashion, cada vez mais um fast qualquer coisa pior. Eu não quero que as coisas sejam desse jeito. Então procuro ser bem baiano nesse momento: tratar as coisas com calma, carinho, porque só assim as coisas vão mudar. E se todo mundo começar a pensar assim, se o indivíduo continuamente começar a pensar, acho que a indústria muda, porque tem aquela velha história: o consumidor é quem faz o mercado. A indústria não vai mudar enquanto a sociedade não mudar. A revolução está em nossas mãos mais do que nunca, e felizmente eu vejo que há uma grande democratização, mas ainda não há liberdade. Essa liberdade depende da educação.









ALETHEA - Você está envolvido diretamente com algum projeto?

JUM NAKAO - Eu sou sempre convidado. Não vou atrás para participar disso ou daquilo. Hoje, felizmente tenho uma situação que é confortável porque os convites chegam. Não fico pensando no que vou fazer amanhã. Digo que sou uma pessoa que não tem projeto de vida. Meus sonhos estão todos em construção. E esse projeto foi interessante porque eles me passaram uma situação que achei terrível, de quanto se queima de resíduos de madeira, que as pessoas consideram um lixo. Vi essas amostras e percebi que eram crianças que queimavam, pegavam um punhado de madeira e colocavam nas fornalhas para transformar em carvão. Era uma coisa que era impossível de ser utilizada. Eu desenvolvi módulos pequenos que vão ser conectados aleatoriamente, de uma forma estética, porque nós vivemos num dos países mais ricos do mundo. A diversidade de nuances de pele, cores de madeira, de tudo aqui é fantástica. Quem me dera qualquer pessoa pudesse juntar e formar, como os índios que pegavam as penas e faziam objetos estéticos fabulosos, cadeiras bonitas e unir para fazer uma luminária. Então eram vários fragmentos de madeira que eram unidos até formar um círculo. Algumas madeiras eram retiradas antes de irem para um acrílico transparente e colocados leds, e aquilo era um projeto que foi premiado, saiu do país, enfim, foi muito bom ter feito esse projeto. Movimento é pensar e conceber. Portanto, eu não acredito muito quando as pessoas vem com esse discurso de sustentabilidade, ecologicamente correto só porque a gente está dando jeito no lixo. É bom ter consciência, mas o que acho mais importante não é dar um jeito no lixo. É produzir menos lixo, senão a gente está simplesmente validando a produção do lixo. Se há alguém que vai limpar, então vou continuar produzindo. Lá no final dá conta de transformar aquilo numa outra coisa. Faço isso muito mais para conscientizar. E a consciência de que algumas pessoas tem é de que reciclar é o máximo. Produzir e produzir lixo é o máximo. É isso que as pessoas deveriam pensar. E para isso, acho que entra aquela questão. Não quero comprar um celular que faça isso e aquilo. Quero comprar um celular que ligue. Quero comprar o celular de uma empresa que eu sei que é correta. Não quero comprar uma roupa que seja a última moda, mas que tenha uma história por trás, que tenha seres humanos que vivam daquilo e através desse meu ato de consumir moda, valide uma interação via mercado com essas comunidades. Se as pessoas passarem a pensar dessa maneira --- quase um escambo de coisas imateriais que tenham valor muito mais do que o efêmero, mas que é o permanente --- acredito que a gente não vai ter mais que pensar em reciclagem, sustentabilidade, porque o nosso pensamento se tornou sustentável. Pensamento insustentável é que gera a necessidade de se criar um contra pensamento. Então vamos pensar no princípio, e não no fim.
















PARTICIPANTE – Você foi escolhido para desenvolver o Centro de Referência Nacional em Design de Moda, aqui na Bahia. O que você pensa sobre isso?

JUM NAKAO - Eu achei bom acontecer isso porque pela primeira vez, moda é considerada algo cultural. Então todos que trabalham com moda aqui, poderiam pensar que temos um grande momento a ser comemorado. Moda, assim como música e cinema, passa a ser responsabilidade do Ministério da Cultura. Se você pensar, não é justo porque tenho certeza de que o segmento de moda, das indústrias, tecelagens e confecções representam todo mundo. Mais do que design. Quem se dedica a design de moda, gera muito mais renda do que quem faz cinema e música. E é bom a gente se articular agora. É importante o quê? Que se forme uma representatividade organizada, porque o grande problema sempre foi desenvolver essa união de criar uma unidade de pensamento tão forte e tão já amadurecido quanto outros setores mais articulados. Imagina que com cinema e música, as pessoas já estão lá há muito mais tempo. Já sabem como as coisas funcionam e vão conseguir pegar do mesmo bolso muito mais recursos do que quem está começando. Ainda mais que quem está começando é da área de moda, que é um grupo muito desunido. Então está tentando se formar um pensamento coeso.

Há seis meses que um grupo de pessoas especialistas das áreas de educação, tecnologia, cultura e arquitetura está comigo para pensar nas diretrizes do que virá a ser esse Centro de Referência Nacional em Design de Moda. Lá no Instituto do Cacau, na cidade baixa, vai acontecer uma grande reforma. Talvez aconteça aqui em Salvador o que aconteceu em Barcelona, que é um lugar portuário e existe grande empenho e uma vontade política que vem lá de Brasília para renovar e revitalizar todo esse centro. E no centro de moda vai ser o local onde haverá uma coerência entre esses pensadores de que, acima de tudo, tem que ser um lugar que transforme e capacite não só os protagonistas, os pensadores e os estilistas, mas também o público. Tem que se formar um centro cultural que respire moda. Não adianta a gente trabalhar numa ponta, se a ponta final que gera o elo não for transformada. Não adianta a gente estar aqui formando pessoas que vão escrever poemas, se o público continua analfabeto. Precisamos alfabetizar. Então o principal ponto de convergência é esse: a gente capacitar o Centro Referencial como Centro Educacional. Temos que fazer todo o mapeamento. Centro Nacional, ponto de convergência de toda a inteligência cultural de um lado, e para vocês, será uma maravilha. Vai acontecer aqui do lado. E esse ponto em Salvador foi escolhido por um motivo simples. Há uma confluência. Na verdade, temos uma cultura muito forte de saberes que caracterizam muito fortemente o que é o Brasil. Saberes de artesão por todo o Nordeste, Norte e Centro - Oeste, que se acontecessem no eixo Rio--São Paulo, ficariam muito penalizados porque já são eixos muito fortalecidos. Então isso vai servir para criar um equilíbrio de forças. Posso dizer que estamos numa fase de pensar naquilo que seriam as diretrizes. Ainda não é o projeto, e as diretrizes são fundamentais porque elas evitam que, no futuro, caso não haja mais nenhum pensador, e a pessoa que assuma queira conduzir para outro caminho, ela seria impossibilitada, porque as diretrizes são as que mais estamos fechando, e posso garantir que elas não são, em nenhum momento, um pensamento egoísta, mas um pensamento para o Brasil, um pensamento para outro setor. As pessoas que estão lá não tem interesse em levar vantagem. Não há nenhum político entre os pensadores que estão trabalhando nesse projeto. E, obviamente, num segundo momento, a idéia é integrar tudo aquilo que já foi feito, tudo o que existe, porque não adianta pensarmos que esse centro é uma roda nova. Várias rodas sobre cultura, design, artesanato e capacitação já estão acontecendo, mas de forma isolada. A idéia é unir, amalgamar tudo isso para que realmente tenhamos um corpo visível. Aqui temos museus fantásticos que muita gente não conhece. Existem vários lugares que possuem acervos e precisam de visibilidade, e esse Centro de Referência tem a obrigação de conferir e mapear tudo aquilo que existe de cultura e que não é parte do conhecimento das pessoas. A gente espera que esse centro venha realmente cumprir esse papel. Mas ainda não tem nada que eu posso afirmar. Estamos na fase de criar esses pilares, que vão ser edificados e só serão conhecidos no próximo ano. Estamos no processo. O conceito cultural para olhar o grande espaço de exposições e culturas populares precisa ainda ser remodelado. Talvez tenha que criar um centro novo de atendimento e de prestação de serviços públicos no Centro Cultural, porque as duas coisas no mesmo espaço acabam não atendendo bem nem um, nem outro. Tudo isso está sendo pensado. Não sei como vai politicamente ajeitar o interesse que pode ser, às vezes, conflitante.









PARTICIPANTE – Eu queria saber um pouco sobre a sua formação, sobre os seus valores, a sua sensibilidade e todas essas transformações que você propôs e se propõe, tanto na vida pessoal, quanto na profissional. O que fez você mudar?

JUM NAKAO - Eu acordo todos os dias e fico pensando o que vou fazer. E penso em tentar fazer um mundo melhor. Quando eu era pequeno, pensava em mudar o mundo através da tecnologia. Eu queria possibilitar às pessoas serem pessoas de outro mundo possível. Longe disso, de certa forma, é quase uma verdade. Os novos meios de tecnologia estão fazendo com que as pessoas mudem o mundo. Nunca aconteceu tamanha revolução na forma de as pessoas se comunicarem e se relacionarem. Eu imaginava poder utilizar na minha linguagem as novas tecnologias e não encontrei as respostas. Fui estudar eletrônica quando ninguém sabia que existia internet. Parecia uma coisa meio ficção científica, em que as pessoas eram teletransportadas. Parecia que eu estava procurando aquilo quando falava em internet, avatares, comunicação virtual e artes interativas. Precisava fazer uma coisa mais simples, feita à mão e mais próximo das pessoas. Aí cheguei à percepção da roupa e o quanto ela é um avatar. O quanto a gente se veste e cria um boneco, um saltitela para que os outros nos percebam. Nos anos oitenta isso era bem interessante porque se identificava o indivíduo punk, gótico etc. Percebiam-se tribos urbanas, as ideologias através da roupa. Hoje mudou muito, está tudo muito igual. Sinto que está muito parecido. Mas basicamente, o que me faz pensar como penso é um pouco como andar de bicicleta. Quando estou andando de bicicleta, na verdade, tem algo bem interessante. Quando você está pedalando, sente os buracos muito mais do que quando está no carro. Você percebe melhor os defeitos do asfalto, mas também percebe muito mais coisas ao seu redor, porque você respira o ar que te rodeia. Você não está dentro de um coco tecnológico, em um carro que liga o ar-condicionado e é só seu. Não é o ar que te rodeia. O som que você ouve dentro do carro é o que você escolhe ouvir e você não ouve as nuances, os ruídos daquilo que está tão perto de você, e tudo passa tão despercebido. Enfim, tem uma série de coisas que procuro me manter de peito aberto, conectado com coisas invisíveis, delicadas, imperceptíveis em que penso: “Isso aqui pode ser mágico, e quero me apoderar.” Assim como um grande cozinheiro quando descobre uma erva fantástica, um tempero bom, quer cozinhar para que todos possam desfrutar daquela experiência, é um pouco o que penso. Tem uma história que contei e serve para finalizar essa conversa. Há cerca de três anos fui para Joinvile, no Sul do Brasil. Fui dar uma oficina na quinta e na sexta feira, e na segunda-feira marcaram uma aula magna. Pensei em ficar por lá, senão no sábado iria para a minha casa e domingo à noite, pegaria o avião para voltar. Pensei em ficar no fim-de-semana como turista. A palavra turista é boa porque turista é aquele indivíduo que percebe tudo de uma forma poética, porque quem é do local já esqueceu. O turista acha tudo incrível, a estrela é mais linda. Como se a terra dele não tivesse estrela. Ele pensa: “Olha como este vento balança os coqueiros! Como a luz desta cidade é diferente!” Mas isso é porque ele está de peito aberto. Não sabia o que fazer naquela cidadezinha e descobri que tinha um passeio chamado “Passeio do barco príncipe”. Era um passeio num lago, e o barco Príncipe era uma Bateau Mouche. Saía de um ponto e ia até a ilha. Não tinha o que fazer, comprei um pacotezinho de turista. Cheguei ao meu quarto na sexta-feira, o telefone tocou, era um professor farrista, que me falou: “Ah! Descobri que você ia fazer o passeio no barco Príncipe.” Eu disse: “É. Comprei. Não tinha o que fazer. Achei interessante.” Ele disse que tinha descoberto e cancelado o meu passeio, mas que eu não me preocupasse porque tinha pedido para sustar o meu cartão de crédito. Ele disse que um professor, seu amigo, tinha um barco a vela e estava me convidando para eu fazer um passeio no lago, com eles. No dia seguinte, por volta das cinco da manhã, eles passaram no hotel. O sol estava começando a se levantar. O lago parecia um monte de lantejoulas prateadas. Estava lindo, e o barquinho dele era o último, todo de madeira com vela branca. E fomos lá: eu, o professor dono do barco, junto com a sua esposa e os dois professores bagunceiros. E o passeio começou. Eu não sabia como o barco a vela podia ir contra o vento. Mas ele vai, de certa forma, em diagonal. Tínhamos que costurar o vento, fazendo ziguezague para chegarmos ao nosso destino. Por volta das dez da manhã, começaram a passar umas lanchas com motor potente. Eles passavam pelo nosso barco e acenavam, dando tchau e nós acenávamos para eles também. E nesse momento, eu estava sentado no outro lado sentindo aquele vento, porque no barco a vela é fantástico: você se desloca em total silêncio. É por inércia. É como se o barco flutuasse mesmo. De repente, o Bateau Mouche passou por nós, cheio de turistas dando tchau para o barquinho a vela. Aí o professor, dono do barco, achou que eu estava arrependido por estar ali sentado na frente e sozinho, quase meditando. Ele foi lá, pôs a mão no meu ombro e falou: “Para essas pessoas, que tem pressa e tem um barco a motor e piloto automático, não existe passeio. Existe ponto de saída e ponto de chegada. Para nós, este lago é infinito. Para eles, é pequeno.” Por isso essa história serve como uma grande metáfora para explicar como eu penso. Eu acho que eu procuro não viver no piloto automático. Quando o professor me falou isso, de repente, foi como se o mundo parasse. Era como se o barco virasse uma rocha e por essa rocha, as paisagens começassem a passar. Era como se a água passasse do lado da rocha, e as paisagens mudassem. É uma sensação fantástica. É o que eu procuro fazer da minha vida. Acho que todos deveriam fazer isso: serem turistas da própria existência, encontrar coisas que lhes inspiram e os fazem mais humanos todos os dias e todos os instantes. Minha vida é feita de afetos e trocas. É assim que eu consigo pensar o tempo inteiro. Minha formação é essa: turista da própria vida, da própria existência.


Fonte das imagens: http://www.jumnakao.com.br

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